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  • A ficção distópica que melhor previu crise humanitária

    A ficção distópica que melhor previu crise humanitária

    Um futuro perturbador marcado pela infertilidade da espécie é a ficção que melhor representa o presente.

    Repressão que parte do estado, violência entre a própria população, uso exagerado de drogas, imigrantes presos em jaulas. São assuntos difíceis de tratar e muitas vezes negligenciados, porém, não é preciso muito se atentar a essas situações, ainda que de forma velada em nosso cotidiano. Filhos da Esperança parte dessa ideia.

    No futuro, em 2027, a humanidade está próxima do colapso porque nessa distopia as mulheres não conseguem mais gerar filhos. O controle de imigração também é severo e opressivo. Esse é o cenário em que Theo (Clive Owen), um herói moldado pela ocasião, se encontra. Ele vive inerte a realidade das ruas como empregado do governo e após ser sequestrado por um grupo ativista, reencontra laços com o passado em Julian (Julianne Moore), sua ex-esposa. Theo precisa conduzir a primeira gestante em anos para os cuidados de uma organização interessada no bem-estar e futuro da humanidade. Kee precisa ser cuidada, já que é uma imigrante ilegal e as autoridades se aproveitariam de alguma forma da sua gestação.

    Olhar alienado

    A indiferença do protagonista com o mundo é um ponto determinante para o desenrolar da trama. O título brasileiro do filme entrega a esperança como força motriz da trama, e de fato o é. Não é ocasional que pessoas se aglutinam em torno de veículos midiáticos, nem que o barco do projeto humanista, colocado como destino final para Theo é nomeado “O Amanhã”. Em meio ao caos absoluto, a esperança é o que resta e sua ausência também seria ausência de vida. Sem razão para seguir em frente e uma catástrofe iminente, o fim já está decretado.

    A construção narrativa de Filhos da Esperança se dá pelo estado de desequilíbrio instituído. Há conflitos gerais, mas sobre tudo humanitária. A câmera acompanha Theo, mas constantemente se desloca para revelar a distopia instaurada. São muitas as cenas que lembram os campos de concentração nazistas no constante desejo do diretor de enquadrar o caos e até mesmo a morte. É um trabalho em que Cuarón repete este recurso, já usado antes em E Sua Mãe Também (2001), é um artífice para contrastar a história de seus personagens com o plano de fundo daquele universo. Uma esfera maior.

    Há mais uma razão para a liberdade exercida pela câmera nos enquadramentos do filme.Essas tomadas perfeitamente orquestradas por Jim KlayGeoffrey Kirkland (Direção de Arte) e Emmanuel Lubezki (Fotografia), levam o espectador à vertigem imposta aos personagens.Isso é essencial para que o público desperte a ideia de que a camada principal é fruto da conjunção angustiante e sufocante em que se segue o entrecho.

    Reflexos no presente

    É interessante pensar que treze anos após seu lançamento, Filhos da Esperança esteja em tamanha sintonia com a realidade. A crise humanitária de 2006, poucos anos após o 11 de setembro persiste ainda hoje e ainda centrada na figura do presidente norte-americano. Naquela época a política de imigração se encontrava em estado austero pelas guerras impostas pelos Estados Unidos aos países do centro da Ásia. No atual contexto, é o México onde nasceu Alfonso Cuarón e outros países latino-americanos que estão em debate e no gritos reacionários dos gringos.

    As experiências quais somos submetidos todos os dias no século XXI se fazem claustrofóbicas porque também atravessamos tempos de inquietude e violência. Em confronto com Filhos da Esperança, há que se atentar a luta necessária para manter a sanidade, para prosseguir com a vida mesmo rodeado pelo caos. As circunstâncias dão razões para desconfiança generalizada, nas pessoas, nas instituições e enquanto indivíduo, é muito fácil internalizar esse conflito onipresente e extravasá-lo de maneira bastante perigosa.

    Em seu filme, Cuarón encontra no próximo, na confiança e cooperação humana a ponte para a esperança. A mensagem do diretor acerta em cheio nosso presente quando aponta nossa falta de humanidade e incapacidade de lidar com a vida. Isso só será reparado quando for entendido que nenhum ser humano é ilegal e que se o respeito para com as pessoas e suas histórias deve reavisto. Essa geração está mesmo comprometida e a esperança nasce todos os dias com uma nova aurora.

    Texto originalmente publicado no site Vortex Cultural.

  • A arte do encontro entre o encanto e a melancolia

    A arte do encontro entre o encanto e a melancolia

    Encontros e Desencontros de Sofia Coppola (ou Lost in Translation) é uma poesia lúcida sobre a vida que acontece de dentro para fora.

    Sofia Coppola tem um dom: sabe extrair a graça da tristeza e exprimi-la em tela. Sua obra, que aborda diferentes fases da vida – especialmente da feminina – se preocupa em observar da desolação que irrompe o tédio das vidas dos seres. Samba da Benção, a canção em que Vinícius de Morais e Baden Powell escreveram “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, não tem a menor relação com o título que Lost in Translation recebeu no Brasil. Mas assim, solta, é perfeitamente relacionável com Encontros e Desencontros.

    Um pouco de amor na cadência

    No filme, Bob Harris (Bill Murray) é uma estrela de cinema em decadência que está em Tóquio para a gravação de um comercial de uísque, enquanto Charlotte (Scarlett Johansson), formada em filosofia, acompanha o marido, com quem é casada há dois anos e veio à cidade para fotografar uma banda local. Eles se conhecem no hotel, onde estão presos no espaço em razão de suas agendas, e dentro de si mesmos, graças a cultura estrangeira que os isola. Se Bob não vê a hora de voltar para casa enquanto sua equipe acumula compromissos em sua agenda. Charlotte parece desesperada para aproveitar a estadia naquela cidade luminosa, mas é impossibilitada pelo marido workaholic que vive a deixando de lado ao longo do filme. Há uma mútua empatia entre essas almas, que se entendem pelos problemas compartilhados e pelo entendimento que a vida é maior que a jaula em que se meteram.

    Por mais que os dois se divirtam, e eles tentam, a angústia e desconforto que ambos sentem paira no ar de Tóquio. Há um contraste incessante entre a comédia inerente à persona que Bill Murray encarna com a tristeza estampada na cara de Bob. Seu personagem é quem dita o ritmo do filme. Por mais que Charlotte tome iniciativa em algumas ações, é Harris quem administra a situação. São personagens simbióticos, pessoas à vagar pela vida, e à deriva das relações superficiais. Cheios de incertezas, pessoais e profissionais; Com dificuldades de se relacionar com passado, presente e futuro.

    Para fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza

    Um detalhe importante da obra é a expansão da solidão coletiva. Presente na obra da diretora em ‘As Virgens Suicidas‘. Charlotte é jovem e recém formada, Bob já tem vinte e cinco anos só de casamento. Por mais que a maioria das pessoas não tenham a possibilidade de seguir carreira assentada no intelecto e, muito menos, conhecer o Japão – uma alegoria para um local estranho e desconexo (a principal nota disso são os personagens japoneses, traçados de certa forma até agressiva – além dos estereótipos). Bob e Charlotte, nos momentos em que estão juntos, são contagiados um pelo outro. Ele, pela jovialidade e desinibição dela, enquanto ela, por sua autenticidade e firmeza.

    Almas desconexas da sociedade, que se reconhecem como gêmeas neste encontro. Mesmo com uma linguagem própria, distinta de filmes semelhantes e da própria filmografia da diretora, Encontros e Desencontros traz muitos traços da assinatura de Sofia Coppola em seu ritmo e estética, uma obra essencialmente bela e difícil de descrever. Há também a aproximação do conceito de felicidade volátil traçado por Nietzsche, de que na vida a verdadeira felicidade só pode ser experimentada em momentos pontuais.

    A bênção com um beijo

    Por um breve período, mesmo enquanto compartilhavam suas frustrações, o casal vivenciava uma conexão que culminaria naquele beijo de despedida. Beijo que é seguido pelo sussurro de Bob ao pé do ouvido de Charlotte, íntimo e terno, próprio da diretora. Eles desfrutaram, um ao lado do outro, a sensação de que são pessoas que fazem da vida algo valioso. Sofia Coppola desenhou um afeto particular e indescritível, quase que anti-romântico. São pessoas que nos servem como alívio, refúgio e depósito de esperanças. Então, é normal que pessoas se separem ao decorrer do percurso, mas o que verdadeiramente importa são os vínculos que temos agora. Como também cantou Vinícius: “é melhor ser alegre que ser triste”.